quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Qual socialismo é possível?


Para além da esquerda (Primeira Parte)


Desde a queda do Muro de Berlim até os dias de hoje são profundas e notórias as mudanças do cenário político mundial. Tantas transformações que poderíamos pensar a década de 1990 como um marco divisório entre os mundos que separam as formas de refletir as entranhas do socialismo antes e depois do muro. Partindo do princípio que é mais salutar caracterizar as diversas manifestações populares com instrumental ideológico marxista com sendo "socialismos" (no plural). A esquerda ocidental pode ser caracterizada como um bloco partidário contrário à um direita liberal. As tipologias são tão diversas que não cabe neste momento caracterizar cada uma de suas variantes. Por hora, a melhor forma de refletir o posicionamento da esquerda no cenário político é analisar suas práticas perante o poder, enfatizando aqui o caso particular do cenário brasileiro.

O mais singular caso de "sucesso partidário" é sem dúvida nenhuma o Partido dos Trabalhadores (PT). Desde o seu nascimento no inicio dos anos 1980, oriundo de uma mescla de sindicalistas, intelectuais, religiosos, populares e líderes comunitários, o PT representou o resgate da esquerda esfacelada pela ditadura dos generais (1964 -1985). Desde os primeiros sucessos nas eleições regionais paulistas até a presidência em 2002, o PT deixou de ser pedra para virar vidraça em apenas duas décadas. Esperança ou pesadelo? O PT de Lula no Planalto nada lembra do antigo PT de "base e de lutas". A adesão eleitoreira das políticas neoliberais para as práticas petistas no poder é um sintoma relevante que o discurso descolou da prática. Sem entrar no mérito das contradições do PT como partido e como poder, a questão essencial se faz pertinente: é possível construir uma política e prática socialista sem recair em seus dogmatismos e fundamentalismos? E a questão fundamental para qualquer ponto de partida se faz necessária: qual socialismo é possível?


Para avançar a reflexão a respeito do socialismo, não será possível somente ficar preso aos antigos paradigmas e construções históricas que demonstraram insuficientes, ineficientes e degenerativas. Nunca se deve negar a história e, além disso, observar atentamente suas valiosas lições. Uma miríade de propostas socialistas já foi contabilizada pela história recente: o clássico socialismo soviético, o esquizofrênico socialismo chinês, o heróico e solitário socialismo cubano, as manifestações de grupos guerrilheiros socialistas em algumas repúblicas da Ásia, África e América do Sul até o socialismo bonachão e personalista de Chávez na Venezuela (a proposta denominada "bolivariana") e Morales na Bolívia ("socialismo de aluguel"?).


É importante ressaltar as diferenças não-triviais entre as ideologias reinantes e a conquista do poder. O poder é praticado pelas vontades narcisistas do grupo hegemônico que ocupam as brechas de vazio político, seja nas urnas ou na bala. Para o caso das ocupações políticas via golpe de estado, por mais ávidos que sejam seus interlocutores pelas leituras marxistas, os resultados práticos são representados pelo banho de sangue em busca da sua própria estabilidade e em nome da "governabilidade" no topo da cadeia de comando. Na representação democrática, a luta se trava pelo voto e pela participação efetiva do poder econômico. A democracia capitalista liberal está muito mais para a perpetuação de grupos econômicos do que pela capacidade de conduzir uma convergência equilibrada dentre as várias classes sociais. Neste quesito, os diferentes grupos que se autodenominam "socialistas" entram em morticínio ataque entre as várias correntes de pensamento. Tanta guerra tribal e acéfala tende com resultado o enfraquecimento partidário e mutilação de idéias e ações socialistas dando espaço para a não-ruptura do pensamento liberal dominante.



Qual a dose de estupidez presente nas várias denominações que se diz “esquerda”? O dogmatismo misantrópico contrário à liberdade do indivíduo é certamente um paradigma que precisa ser destronado. A articulação entre o coletivo e o indivíduo não é apenas uma mera retórica programática, mas um desafio realmente pertinente para avançar a idéia do socialismo não-atávico às práticas totalitárias. O apego deliberado ao poder não são exclusivas dos fascistas, liberais, militares ou qualquer grupo que ocupa ou deseja usurpar o poder. Cabe a um verdadeiro movimento socialista ser nutrido por um profundo respeito pela vida humana e não apenas o culto à uma simbologia partidária e alienante. É fundamental perceber que o verdadeiro inimigo do socialismo não é o liberalismo e seus similares capitalistas, porém é sobretudo as práticas totalitaristas praticados pelos próprios socialistas, estejam no poder ou não. Ação e discurso não podem ser apenas meros acessos estanques entre teoria e realidade. As práticas devem estar compactuadas com uma teoria compatível à realidade de cada sociedade. O socialismo não é uma receita de bolo pronta para ser utilizada com um forno de microondas e independente da clientela, mas acima de tudo, uma permanente construção entre o que se deseja realizar e o que é possível efetivamente fazer de forma não-pragmática. Os liberais dizem que nada é possível fazer além de aceitar a realidade tal como ela é. No entanto, cabe aos socialistas e seus simpatizantes duvidarem do pragmatismo liberal e demonstrar que não existem fronteiras quando se trata da superação da miséria humana.



A democracia burguesa tem algumas vantagens dentre um oceano de desvantagens. A primeira delas é a liberdade para refletir o quanto o pensamento socialista precisa avançar para se tornar alternativa viável de transformação. É imprescindível atentar para um fato transformador e avassalador: a transformação não deve ser apenas a ocupação ou usurpação do espaço político, mas a construção diária do desmonte das estruturas que oprime as camadas desprotegidas e as minorias sociais.


Não é possível criar falsas ilusões perante a realidade: um verdadeiro programa socialista não deve ser pautado pela vaidade e o discurso populista de algumas de suas lideranças, mas a obsessiva e fundamental busca do resgate da esperança e da ação transformadora que leve a todas as pessoas não somente o progresso material, mas essencialmente, a superação das desigualdades e a condução da dignidade humana.

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