terça-feira, 13 de novembro de 2007

Antinomias do Poder

(Imagem da Ilha do Mussulo, Angola, 2005)

Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo. (Karl Marx, Teses sobre Feuerbach, 1845)

Todas as formas de poder são ilegítimas, exceto aquelas que não visam sucumbir às suas entranhas. A história da humanidade pode ser sintetizada como sendo a busca implacável pelo poder. A intensidade desta busca pode ainda variar conforme a paixão, o ódio, a repugnância, a afeição ou o desespero conforme o grau de necessidade e interesse do grupo que deseja ocupar um espaço político. O espaço político é aquele no qual seja possível tecer relações sociais entre seus membros. Excetuando as religiões mais dogmáticas, todo espaço político é passível de mobilizações. Nada é absoluto e muito menos eterno. O espaço político vive em constante sístole e diástole entre suas esferas. A esfera de poder está intimamente ligada com diversos interesses de grupos. Mas nos diversos regimes já adotados pelas sociedades, seja tirânico, democrático ou teocrático, em todos eles há um denominador comum: a busca pelo poder. Seja num regime político aberto ou fechado, há em seu seio uma permanente luta por espaços associados a diversos interesses. Em todos os esboços revolucionários (ou pelo menos dignos de nome), a luta interna pelo poder é tão ou mais intensa quanto a luta para destituir o outro poder, ou seja, o “poder do inimigo”.


No sistema capitalista, deter o poder significa ser doutrinado por uma classe dominante que permite sustentar todas as estruturas de espoliação do trabalhador, interagir barreiras alfandegárias e cambiais, utilização do espaço público como extensão dos interesses privados entre outras nuances, são ações imprescindíveis para a sua própria existência. No capitalismo a ordem unilateral é a multiplicação assimétrica de mais capital. Na política no regime capitalista é a síntese da disputa de segmentos partidários para verificar qual deles consegue uma melhor condução da política do status quo vigente. No capitalismo a ordem é a acomodação e jamais a transformação. Não interessa aos capitalistas turbulências em seus negócios e muito menos movimentos que possam radicalmente alterar seus nichos mercantis. A democracia, portanto, não é um pressuposto essencial e único para o capitalismo velejar, mas tão somente a liberdade. É preciso deixar claro que a liberdade em questão é a que tange a esfera predominantemente econômica em detrimento a qualquer outro diagnóstico pueril de liberdade. A justiça é importante quando a lei esta ao lado do capital. Não existe justiça totalmente imparcial assim como não é possível descartar a imparcialidade do juiz. A justiça é feita pelos homens para interagir seu martelo com outros homens. A justiça no sistema capitalista jamais é “cega”, no mínimo, caolha. Logo, a justiça é um conceito essencialmente político. Todo juiz é um ser político e suas sentenças serão de acordo com seu ideário político. Assim, democracia, liberdade e justiça são bens essenciais para uma sociedade, mas enquanto construção de interesses humanos são elementos cerceadores do poder.


O poder de autoridade é exercido pelas botas da opressão. Na democracia capitalista é onde o poder de coerção social possui sua vertente mais hipócrita dentre todos os regimes já construídos pelas sociedades. Na medida que reprime uma manifestação ou ocupação de terras por trabalhadores rurais, por exemplo, a polícia “democráticamente” protege os pressupostos “direitos de propriedade” do latifundiário. Uma única pessoa, o “capitalista”, é o “posseiro regularizado” (vulgo, o “dono”) de uma vasta quantidade de terras (independente de sua produtividade) em detrimento a situação de milhares de famílias jogadas à sorte da mendicância campesina. Para o poder judiciário, tudo é normal e “dentro da lei”. A coerção do poder do Estado garante a “integridade” das terras para o latifundiário, mesmo sabendo que isto poderá levar a desgraça milhares de pessoas famintas! Na democracia capitalista, o poder não prega igualdade ou fraternidade, mas, sobretudo à “obediência” a uma suposta Constituição vigente elaborada por políticos que defendiam determinados interesses de grupos que apoiaram sua caixa “um” ou “dois” eleitoral.


O poder só existe essencialmente através das massas (1) . As massas não precisam do poder para existir. O poder é uma abstração política, as massas é o sangue pulsante da realidade. Somente o que poderá se opor verdadeiramente a noção de poder será a sua contraparte político-ideológica, por assim denominamos, o “contra-poder”. A idéia da construção de um modelo para desenvolver a abrangência do contra-poder não significa, a priori, a pura e simples subversão da ordem, uma vez que a alteração cosmética desta ordem não é essencialmente uma ruptura do modelo vigente. O contra-poder terá como linha mestra a subversão da própria idéia de poder: recusa-lo inicialmente e, posteriormente, sedimentar esta nova manifestação política e social, não apenas como base ideológica, mas sobretudo, sua práxis. O contra-poder representará a renuncia da busca alucinada e demagógica pelos poderes nas vias tradicionais de aderência de esferas de comando. O contra-poder não visará restituir nenhuma forma de poder, mas eliminar toda forma de coerção e manipulação pré-existentes inerentes a esse poder.


A autodeterminação dos povos é a principal meta teórica do contra-poder e sua práxis induzirá na plena liberdade de sublevação dos oprimidos. Nenhum segmento da sociedade pode ser escrava de um outro segmento. A escravidão, seja ela qual forma vil se manifeste, é uma ignomínia da Natureza humana. A democracia deverá ser ampliada afim que se possam conviver plenamente as diversidades sócio-culturais. Infelizmente, hoje quanto mais se fala em democracia, mais são sensíveis os parâmetros da opressão, seja ela velada ou não. A liberdade pressupõe que todos têm o direito a se expressarem livremente de forma autônoma, sem bloqueios ou amarras, seja de natureza política, religiosa ou econômica.


A justiça pressupõe o direito da não-submissão de oprimidos e a não-aceitação da divisão social. A diferenciação por classe ou estamentos da sociedade também é outra aberração da Natureza humana, e possivelmente seja as mais antigas de todas desde quando o primeiro homem usurpou para si um pedaço de chão e auto-proclamou de “meu” (a partir deste momento era parida a doutrina que fico sendo conhecida como “propriedade privada”). A verdadeira democracia e a essencial liberdade para serem dignas das estruturas viscerais das sociedades será imperativo a abolição incondicional das classes sociais. E neste estágio de humanização social onde serão inseridos os padrões mínimos de uma verdadeira justiça entre os homens.


Os movimentos de massa deverão livremente serão gestores de suas ansiedades e necessidades. Questões vitais como a educação, a saúde, o abastecimento alimentar e o saneamento básico entre outras ponderações igualmente importantes, serão administrados de acordo com os interesses dos membros destes movimentos de forma democrática e coletiva. O contra-poder tem como premissa fundamental a libertação do homem de suas amarras socio-economicas e entregar em suas mãos a condução de sua vida e do seu grupo social o qual está inserido. Não precisamos de sangue de inocentes para cultuar religiosamente, todos os povos serão mártires de si mesmos.


Não carecemos de razão, carecemos de utopias. O contra-poder não representa a negação da política, mas o escancaramento de sua democratização ao acesso dos fazeres políticos. O homem é um animal essencialmente político, negar a política é privar o homem de sua capacidade de interlocução entre seus pares. No entanto, não é possível construir um mundo encharcado de ódio, segregação, miséria, fome, moléstias cuja a cura seja amplamente conhecida e as diversas formas de extração da mais-valia. Somente uma mobilização ativa em prol da construção do contra-poder poderá encontrar nas raízes existenciais do ser humano, o resgate hercúleo do humanismo como forma de libertação das alienações vorazes dos poderes vigentes.


Não é possível legitimar pseudo-ideologias sob o manto faustiano de corromper as massas em prol de um grupo de pequenos “iluminados” cujo desenrolar a história registra trágicos destinos. Não podemos justificar doutrinas com sangue inocente, eclosão de barbáries sob a pseudo-razão do levante de bandeiras atreladas a conquista da imaterialidade do poder. Todo poder é transitório, mudam-se suas táticas, mas persistem suas atrocidades. O contra-poder não é uma doutrina ou busca ser uma cartilha de práxis pré-determinada. O contra-poder busca a libertação do homem de um sistema escravo-mercantil em nome de uma nova visão de dignidade do ser humano. O contra-poder não busca pretensiosamente ser uma doutrina semi-religiosa, mas tão somente uma saída que tão aflige o ser humano há séculos. Somente o homem liberta o próprio homem, o resto é engodo vociferado por aqueles que ostensivamente lucram explorando milhões de outros homens.

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(1) Aqui definimos “massas” como um segmento predominantemente homogêneo de uma sociedade, com particularidades e interesses em comum.

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