quarta-feira, 5 de novembro de 2008

A Eleição do 'Crash': Da Onda Obama à Realidade do Fim do Estado de Bem-Estar Social


A gerência do maior complexo militar do planeta troca nominalmente de mãos em um momento de inflexão histórica. Madrugada de quarta-feira, 05 de novembro de 2008, assisto pela Record News, ao vivo e via satélite, o primeiro discurso do recém-eleito presidente dos Estados Unidos, o democrata Barack Hussein Obama. Como nas típicas montagens cenográficas dignas das superproduções midiáticas de Hollywood, uma multidão comemora a vitória do candidato negro (mulato para os padrões brasileiros) à Casa Branca, no Grant Park, em Chicago, no Estado de Illinois, o qual Obama é o atual senador por este estado.


No histórico discurso de Chicago, Obama agradeceu seus correligionários, pediu a união do povo estadunidense e ressaltou o trabalho de Joe Biden, o eleito vice-presidente de sua chapa. Ovacionado por uma legião emocionada de adminiradores, após o discurso, sobe ao palco as mulheres de Obama e Biden e posteriormente seus familiares, uma espécie da grande confraternização da construção simbólica e suprarracial da “família da América”, um dos pilares do conservadorismo estadunidense.


Barack Obama é um meteoro político e midiático. De um desconhecido senador negro (ou politicamente correto falando, afro-americano!) de Illinois em 2004 à “obamania” presidencial de 2008, Obama venceu uma dura batalha contra a pré-candidatura democrata da poderosa Hillary Clinton, considerada a favorita por muitos analistas, até ganhar finalmente a adesão se seu partido para ser o candidato oficial do Partido Democrata. A disputa com um cansado candidato do Partido Republicano, o veterano de guerra, John Mccain, e sua inusitada e atrapalhada candidata a vice-presidente, a governadora do longíquo Alaska, Sarah Palin, foi mais um período para confirmar junto ao eleitorado a supremacia do carisma midiático de Obama e a ressonância dos seus discursos sobre suas promessas de “mudanças” a serem implementadas em seu país. Vale lembrar da desastrosa campanha de Mccain e as gafes hilárias de uma pré-fabricada Palin (uma gafe inesquecível é a sua entrevista televisiva à uma jornalista a qual a vice de Mccain respondeu que não sabia quais jornais ela lia diariamente!). Soma-se ainda ao esforço de desvincular Mccain do fardo de ser o “candidato de Bush”, considerado pelos próprios estadunidense com o seu pior presidente de todos os tempos (superando até mesmo o desastre da administração de Richard Nixon!).


Obama não economizou recursos e não fez uma campanha nada modesta para um candidato que concorria contra um republicano “desesperado” no páreo. Com uma campanha considerada a mais rica da história das eleições estadunidense, onde mesclou contribuições massiva de agentes econômicos tradicionais e uma inteligente arrecadação via meios eletrônicos voltados para o “eleitor comum” com contribuições modestas a partir de 5 dólares por simpatizante (uma espécie da global “Criança Esperança” brasileiro para engordar o caixa eleitoral de Obama).


Todavia, os dois maiores cabos eleitorais de Obama foram o desgaste da herança desastrosa do imperialismo fascista do Partido Republicano, na figura do patético George W. Bush, e a histórica crise financeira que se estourou com a mega-bolha especulativa de Wall Street em plena campanha eleitoral e está não apenas levando os Estados Unidos à recessão, como parte significativa do mundo à reboque. A eleição do “crash” transformou a figura de Obama como o novo messias do stabilishment estadunidense e alavancado como um predestinado “líder mundial”. A crise financeira estadunidense de 2008, iniciada pela bola especulativa dos mercados imobiliários, passou da esfera da cafetinagem dos lucros fáceis da economia via bolsas de valores à economia real. O desespero tomou conta dos mercados mundiais, devastando empresas e desemprego em diversos países do mundo do “capitalismo maduro” e que derreteu trilhões de dólares em poucos dias. A hecatombe econômica que deixou os Estados Unidos à beira do colapso em 2008, em magnitude, somente é comparável apenas ao “crash” da bolsa estadunidense de 1929 e, na ocasião, representou um marco na história mundial e implementação de políticas de intervencionismo estatal no capitalismo sem freio do início do século XX. O fim da irresponsável retórica neoliberal de deixar a promíscua “mão invisível” atuar no mercado foi deixada de lado e a cartilha keynesiana foi tirada do fundo do armário e buscou-se uma retomada da estatização de grande parte do setor financeiro através da forte intervenção do Estado. A “socialização” das perdas da ciranda especulativa através do dinheiro do contribuinte criou-se muita celeuma dentro dos Estados Unidos a ponto do governo Bush ter muita dificuldade de emplacar seus generosos pacotes de ajuda financeira aos especuladores falidos.


Neste rastro de destroçamento econômico estadunidense, nem mesmo o enraizado preconceito dos estadunidenses impediram de eleger o primeiro negro à sucessão de um país com profundas chagas de conflito aberto racial. Por sua vez, visando não perder eleitorado e apoio de demais grupos éticos, Obama procurou minimizar o fato de ser um “candidato negro” e se postulou como um “candidato de todos da América”. Para Simon Jenkis, do jornal inglês “The Guardian”, a vitória de Obama simboliza o fim da supremacia "wasp" (a elite americana branca protestante) nos Estados Unidos, onde a cor da pele ainda representa forte peso eleitoral. O carisma midiático de Obama cruzaram o Atlântico e o Pacífico, e a “obamania” varou o mundo cada vez mais anti-estadunidense. “O motivo de sua candidatura ter incomodado muitos americanos é o motivo pelo qual o mundo ficou eletrizado por ela: Obama é meta-americano”, salientou Jenkis em seu artigo para o periódico inglês ressaltando a simbologia de Obama.


A cruzada fascista de Bush e nome da “guerra contra o terror”, a invasão do Iraque e o patinação das tropas estadunidense no Afeganistão perderam fôlego dentro da campanha presidencial de Obama e Mccain em virtude dos estadunidense estarem muito mais preocupados com os destroços da crise econômica interna e não perderem seus próprios empregos. É importante salientar o fim do estado de bem-estar social implantado pelo New Deal patrocinado pela administração de Franklin D. Roosevelt, a partir do início dos anos 1930 e vem sendo paulatinamente erodido nos Estados Unidos por anos de aplicação de um neoliberalismo explícito, diminuição da participação do Estado dentro da esfera social e amplição da concentração de renda dentre as camadas mais ricas da população (24% das riquezas estadunidense estão na mão de apenas 1% da população). Sem uma política pública de saúde, o custoso sistema de saúde privado é uma das maiores queixas dentre as classes médias e pobres estadunidenses. Este esfacelamento do estado de bem-estar estadunidense são práticas desenroladas desde as políticas republicanas da Era conservadora representada pela gestão de Ronald Reagan, início do anos 1980, e se prolongando até agora, os anos neoconservadores de Bush filho.


Obama é o arquétipo do “sonho americano” no coração da América, ou seja, a retórica da mobilidade de classes dentro das economias desenvolvidas. Obama promete o resgate do padrão de vida das famílias estadunidense via diminuição dos impostos do contribuinte. Será? Como mote de campanha, é afrodisíaca uma redução de até 90% da carga de impostos diretos das famílias estadunidenses! Todavia, a realidade será bem outra. Os Estados Unidos não vão abrir mão de serem a “polícia do mundo” e o gerenciamento do império não é nada barato. Para cada 1 dólar gasto em impostos, 40 centavos vão para os cofres militares. Trocando em miúdos, cerca de 40% do orçamento do país é para sustentar o maior complexo militar do planeta e posto de unipotência imperial bélico do planeta. No total dos orçamentos militares de todos os países do mundo, 45% são derivados dos gastos estadunidenses. Obama já declarou que não vai mexer no orçamento militar nos primeiros anos de seu governo. Portanto, é será difícil acreditar em redução de impostos, que impactará diretamente na arrecadação a ponto de comprometer o orçamento militar e certamente decepcionará muita gente que acredita que Obama diminuirá o fetiche imperialista estadunidense pelo mundo. Não há indícios ainda que Obama irá abrir mão do keynesianismo militar para buscar alavancar parte da economia interna derretida pela farra dos especuladores de Wall Street.


Sim, nós podemos!”, retórica repetida à exaustão na campanha de Obama. Cabe ao candidato passar de uma messiânica figura política na difícil superação e unificação do voto “negro” e “branco”. A simbologia do Obama, um afro-americano bem-educado e sucedido (“quase um verdadeiro branco estadunidense!”) poderá inicialmente trazer muita euforia e sensação de “mudança” nas posições estadunidense pelo mundo. A realidade o pragmatismo poderá reinar na futura administração Obama. É importante ainda salientar que não há caminhos para ilusões: Obama não governará sozinho ou apenas com alguns seletos assessores. Na intricada rigidez da administração do império, Obama poderá ser mais um refém das sólidas e conservadores estruturas de dominação dentro da arquitetura de poder nos Estados Unidos.


O que chama mais atenção é o momento histórico de resgate da identidade estadunidense Pós-Wall Street. No emblemático discurso de vitória em Chicago, na noite de ontem, dia 04 de novembro (horário local), Obama representou irradiante esta figura arquetípica de “esperança do sonho americano” para milhares de estadunidense. Somente num futuro próximo dirá se a onda da obamania virará (ou não) uma nostálgica maré. Para o restante do planeta que deverá estar com o olhar atento no retrovisor da história, o pragmatismo ainda é a melhor caminho para as relações políticas com Washington, sem prematuramente mergulhar de cabeça em fortuitas promessas de ondas multirraciais e pan-americanismos eleitorais com largo sorriso.


quinta-feira, 1 de maio de 2008

A esquerda à deriva: Primeiro de Maio, neopetismo liberal e o autismo sindical


Existe "esquerda" no Brasil? Fossilizou-se, se "endireitou" com o neoliberalismo ou ronca detrás da mesa de escritório de algum sindicato de fachada? Abrindo os jornais deste "primeiro de maio" a situação é tragicômica, para não dizer patética. Ontem, o governo Lula entrou em convulsão orgasmática pela nova classificação do Brasil para níveis de investimento mais "confiáveis" rotulados pela agência Standard & Poor's... Standard o quê? De uma hora para outra, esta ilustre agência privada de interesses tão idôneos quanto lobbistas no Congresso Nacional fez os índices especulativos da Bovespa dispararem como os batimentos cardíacos de amores apaixonados. Pergunta de um mero tupiniquim: que agência pirata é esta se arrogando de um suposto poder global para julgar e rotular países com estúpidas notas? Qual credibilidade tem tal agência quando trabalha para interesses de seus próprios clientes e acionistas? Para dizer “amém”, até mesmo o presidente Lula parou um discurso que fazia no Nordeste para dar a "boa nova" ao país sem ao menos saber direito que diabos de "boa nova" seria essa de fato! Para quem sempre criticou os tucanos neoliberais, o neopetismo liberal demonstra face cada vez mais sórdida inviabilizando qualquer projeto de construção realmente popular e social. Diga-se de passagem, são as raposas do cenário especulativo da ciranda financeira que mais lucraram no governo Lula.


O interessante neste episódio envolvendo a Standard & Poor's é o fato do PT sempre ter tido lutas historicamente contra estes loteadores de patrimônio e ter aversão à especulação financeira destas agências piratas espalhadas pelos Estados Unidos e Europa, particularmente na Inglaterra. Velhos tempos e páginas viradas!... Nem eu e nem você prezado leitor, devemos ficar mais ricos nos próximos dias devido a tal "extraordinária" manifestação de bom agrado dos capitalistas do “Primeiro Mundo” para a política brasileira. Em outras palavras, fazemos direitinho a ortodoxa lição de casa orientada pelos nossos primos-ricos para não levarmos um puxão de orelha. Apos elogiar toda a lição de casa bem feita num límpido caderno verde-amarelo pela equipe econômica do governo, como um grande pai generoso que abençoa e se preocupa com seu filho, é interessante notar as "recomendações" que a Standard & Poor´s vaticina ao Brasil em seu relatório:


Medidas adicionais para reduzir o "custo Brasil", simplificar o regime tributário, promover maior flexibilidade no mercado de trabalho, reduzir as tarifas de importação e facilitar o investimento privado em energia e infra-estrutura reforçariam o clima de investimento no Brasil e as perspectivas de crescimento em médio prazo. ("Classificação dos papéis de longo prazo brasileiros em moeda estrangeira elevada ao grau de investimento 'BBB'", Standard & Poor´s, 2008)


A pérola do “custo Brasil” é o sinalizador de que os capitalistas pedem para que o Estado brasileiro queime suas gorduras nem sempre localizadas. São explícitas as regras neoliberais quanto à diminuição do Estado na economia e recomendação para elevar ainda mais a precarização do trabalho com o desprezível rótulo de "flexibilidade no mercado de trabalho". Para os arautos abutres de plantão no Congresso, aproveitarão o "bom momento do país" para esquartejar (ou seja, leia-se “reforma”) cada vez mais do que anda resta das leis trabalhistas. Tudo em nome do "progresso" e "desenvolvimento" brasileiro. Uma vez que para a burguesia capitalista, salários nunca são investimentos, mas, sobretudo "custos". Portanto, é fundamental cortar custos para as empresas, ou seja, é automaticamente eliminar o peso inconveniente do assalariado. E esse por sua vez, no limite da lucratividade exponencial, é um custo realmente descartável! Adeus ao trabalho? Não, adeus ao salário e seus direitos trabalhistas! Trabalho sempre existirá para servir os anseios de consumo que se converterá em lucro, porém salário é contra coisa bem diferente. Quanta comemoração para nosso "Primeiro de Maio"!


Por outro lado, ainda debruçando sobre os jornais que registram as cifras astronômicas das comemorações surrealistas patrocinadas com dinheiro do patronato e erário estatal sob a chancela das centrais sindicais. O Primeiro de Maio que outrora representava uma data para simbolizar a luta dos trabalhadores e oprimidos contra o rolo compressor do capital virou um patético show do "caminhão do sindicatozão". Os polpudos cabides de empregos parasitários concentradas nas centrais sindicais estimam um gasto "simbólico" de 6,5 milhões de reais em São Paulo para comemorar no dia do espoliado. Da nefasta e corrupta Força Sindical à neolulista CUT, distribuirão alienadamente para os bestializados presentes uma série de prêmios bem como faz o Baú do Sílvio Santos regado a um bando de cantores cujo comprometimento político é o cachê no final da apresentação. Quanta festa para os desdentados de barriga vazia e carteira de trabalho em branco! Com o esvaziamento da política como construção simbólica de ação e o pragmatismo individualista pregado pelo neoliberalismo transformam sorrateiramente anseios coletivos em meros incômodos pessoais.


Segundo dados do Dieese, para o mês de março de 2008,
R$ 1.881,32 é o "salário mínimo fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família, como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, reajustado periodicamente, de modo a preservar o poder aquisitivo, vedada sua vinculação para qualquer fim" (Constituição da República Federativa do Brasil, capítulo II, Dos Direitos Sociais, artigo 7º, inciso IV). A benesse estatal estipula o salário mínimo de referência no plano nacional de R$ 415,00, ou seja, 22% do mínimo necessário para uma família sobreviver, segundo a Carta Magna e o Dieese.


O esvaziamento da "esquerda" é perceptível no emaranhado sindical. A necrose ideológica de nossa "esquerda" é a avalanche cada vez mais fulminante do autismo sindical, agora sob a batuta do peleguismo oficializado. Infelizmente, muitas direções de sindicatos de alugueis não passam de verdadeiras quadrilhas que se locupletam do poder, permanecendo de forma vitalícia e embebida em dinheiro público como as usurpações do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). O sindicalismo autista utiliza-se do espaço sindical para sorver dinheiro do erário e de seus associados, além de constituírem verdadeiros cabidões de renda e trampolim político. Os partidos políticos nominalmente situados à esquerda estão muito mais interessados no seu próprio projeto político (leia-se, “interesses pessoais”) e se engalfinham na luta e alianças por mídia, dinheiro e discursos de conteúdo de bexigas de festas de aniversário. Quando tudo se transforma em consumo alienado, não raro são os desfiles do embelezamento político das camisetas avermelhadas, do “Che” para dar um curtimento mais “radical” para as propostas políticas.


"Sou feliz porque estou empregado!", invocando o Criador Divino, quantos trabalhadores já não transpiram esta frase? A Casa Grande se ampliou em diversas denominações corporativas e a Senzala continua sendo o aglutinamento envernizado da opressão e marginalização do trabalhador na luta pela sobrevivência. A panacéia do trabalho assalariado como elemento fundador da moral do mundo material contemporâneo se dilui gradativamente na escassez dos empregos formais e amplia-se consideravelmente a precarização e o subcontrato à margem das leis e das condições mínimas de segurança ou dignidade humana. Os sindicatos perdem força e associados na medida em que sua credibilidade possui cores semelhantes ao rio Tietê paulistano e poder simbólico de representação coletiva tão minguada quanto o próprio salário médio do trabalhador.


É preciso reinventar uma nova esquerda assim como é preciso resignificar o conceito de política e luta sindical.
Uma grande preocupação atávica deverá situar no campo dos questionamentos sobre a riqueza e divisão da renda. Pouco importa se um país se portará como um bom ou mau gigolô global para ser classificado como algum nível de sedução para investimentos transeuntes. A pergunta crucial é quem de fato se apropria desta riqueza? A velha máxima do confeiteiro-mor dos Anos de Chumbo, Delfim Netto, "crescer o bolo para dividir", só pode ser verdade na cabeça daqueles que sempre se lambuzaram do chantili e engordaram com cerejas e morangos.


Quanto a tal "comemoração sindical", a seguir, apenas o registro de alguns números meramente ilustrativos do neomundo do deslumbramento lulista. Segundo dados do DIEESE de 2005 em algumas regiões metropolitanas brasileiras, o desemprego entre jovens entre 16 a 24 anos, tinha uma estimativa média de 45,5%. Segmentando o percentual de desempregados nesta faixa etária, 41,4% em Salvador, 39,9% em Recife, 35,4% no Distrito Federal, 30,5% em Belo Horizonte, 29,9% em São Paulo.


Na ausência de ganhos reais de salários, o limite do “cheque especial” e o polvilhamento do micro-crédito descontado na folha de pagamento se incorpora como pseudo-renda no bolso de alguns trabalhadores que ainda podem ter acesso a estas “facilidades do sistema financeiro” e, por sua vez, fomenta crescentemente a perigosa “bolha do crédito”. Para o restante dos trabalhadores, a situação se torna ainda mais dramática quando a teia de proteção social é praticamente incipiente e convivendo com algumas querelas do controverso “bolsa família” e similares.


É notório que a Queda do Muro simbolizou um trágico aneurisma ideológico nas esquerdas de todo o mundo e, naturalmente, o hecatombe também foi sentido no Brasil. Há uma nítida sensação de perde de rumo e horizonte norteadores. Quando em alguns casos, algumas correntes que se denominam esquerda se mimetizam uma falsa junção entre socialismo e retórica democracia capitalista taxada como uma novidade política com uma sugestiva denominação mercadológica a sabor de cada leitura ou interesse local, a tal “Terceira Via”. Ademais, será que depois de recolher estilhaços e cacos idológicos, apenas sobraram para a “esquerda” administrar o capitalismo melhor do que os escoteiros da “direita”, como salientou há algum tempo o professor Bresser-Pereira, em artigo na Folha de S. Paulo? Acredito que uma esquerda socialista e libertária é a única possível contra a barbárie imposta pelo sistema de produção permanente de párias sociais que cada vez mais se amontoam no estamento o qual denomino “escória”, ou seja, classe dos desvalidos amorfos e deslocados de qualquer sistema social possível (uma “modernização” do lumpemproletariado marxista).


Enquanto a esquerda continua à deriva, o neopetismo sorri abobalhadamente com as notas pedagógicas da ciranda especulativa globalizada e as centrais sindicais torram dinheiro em comemorações estéreis e alienadas, milhares de empregados, desempregados e subempregados vivem perambulando entre o risco de perder o emprego aceitando qualquer salário e o medo de não morrem de fome nas periferias das cidades e no campo.


Ainda cabe uma última pergunta: Algo a comemorar?




Referências:


Folha Online. Leia a íntegra do comunicado da Standard & Poor's. São Paulo, 30 abril 2008. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u397405.shtml. Acesso em 01 maio 2008.


Departamento Intersindical de Estatítisticas e Estudos Sócioeconomicos - DIEESE. A ocupação dos jovens nos mercados de trabalho metropolitanos.Estudos e Pesquisas, n. 24, ano 3, set., 2006. Disponível em http://www.dieese.org.br/esp/estpesq24_jovensOcupados.pdf . Acesso em 01 de maio 2008.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Partido dos Trabalhadores (PT): refundar ou perecer!




“O dilema diante do qual se encontra a humanidade apresenta-se assim:
ou a decadência na anarquia, ou a salvação através do socialismo”
(Rosa Luxemburgo)


No próximo domingo, 2 de dezembro, ocorrerá o primeiro turno das eleições internas do Partido dos Trabalhadores (PT), e seus filiados escolherão seu presidente nacional e demais cadeiras que serão compostos os diretórios estaduais. Para o atual momento, uma pergunta se faz presente: O que é o Partido dos Trabalhadores hoje? A subida do partido com a estrela de Lula ao Planalto consolidou a opção da doutrina pelo poder eleitoreiro sem um consistente projeto político. Logo apareceram os efeitos colaterais e, para variar, proveniente de odores de fétidos bueiros de Brasília! O resultado é um partido descaracterizado cujas principais lideranças foram solapadas na esteira da corrupção. Dentro do ufanismo pós-eleitoral, adiciona-se ainda ao enfraquecimento político da mobilização das agremiações de esquerdas brasileiras. Qual é a ideologia reinante nas atuais práticas do petismo: socialista ou neoliberal? Qualquer que seja a resposta, o quadro é alarmente digno um Frankenstein político.

Após a crise abominável do mensalão, inexplicavelmente ninguém foi punido dentro do partido. O PT mimetizou Pilatos: lavou as mãos encharcadas de dólares (até em cuecas!) e fechou os olhos para membros acusados de práticas nefastas. O combate à corrupção representou na sua origem um dos pilares centrais do partido com a proposta de fazer política com ética e transparência. O discurso virou pó, ou melhor dizendo, poder e dólares! O arauto José Dirceu não só não foi punido e, até hoje, sua sombra perambula com seus tentáculos dentro das esferas de decisão do partido. Nenhum Delúbio Soares foi cassado, nenhum “valerioduto” foi criticado com veemência dentro do seio partidário. Nenhuma postura crítica das políticas neoliberais praticados pelo governo federal foi questionada e tampouco os conchavos nefastos que o PT federal vem tecendo seu discurso e desenvolvendo suas práticas. Abjeta é a briga visceral por cargos públicos na caravana da alegria sindical. Basta estar encostado em alguma sigla sindical da aba petista para sugar avidamente o leite tenro do erário. Acabrunhado, o partido mingua sua credibilidade e assiste sua história se misturar com o cheiro do ralo. Que tipo de metástase está consumindo o PT e que monstro está sendo parido para o futuro tendo em vista suas práticas políticas?

Uma das questões abominável no atual modelo do PT (e que teoricamente - ainda - é o "núcleo duro" do governo federal) é a falta de visão estratégica para o país. Para quem acompanha a política partidária, os candidatos à presidente do partido estão muito mais preocupados com a visão imediatista à aderência ao lulismo e seus assentos em cargos públicos. O glúteo no erário público é a matriz do discurso político. Causa asco figuras deletérias, parasitárias, retrógradas e sempre se esquivando de "suspeitas" de corrupção (por exemplo, ver administração Marta Suplicy na cidade de São Paulo) como Jilmar Tatto que está concorrendo a presidência do PT, além da patética figura de Ricardo Berzoini, outro candidato, a releição! Para nenhuma surpresa, Tatto como candidato nacional à presidência é a certeza que a lama apodrecida está chegando a níveis alarmantes dentro do partido. As eternas brigas de martelo e foice no escuro do sectarismo infantil da "esquerda" do partido representada pelas chapas de Marcus Sokol e Valter Pomar somente ajudam a empurrar o PT cada vez mais para neoliberalismo e obscurantismo político. Possivelmente, José Eduardo Cardozo, será o nome mais consensual para fazer mais do mesmo, ou seja, "manter o que já esta para ver como é que fica". Para o quadro sucessório da presidência estadual que por muitos anos estava alojado nas mãos do bufão Paulo Frateschi, os nomes são de uma profunda pobreza política, insignificantes e descartáveis. Pobre São Paulo, pobre PT!

Dentro do quadro à sucessão do bufão-mor, o Sr. Berzoini, a história de luta do partido não merece nenhum dos nomes para a presidência nacional que estão na disputa das eleições internas. Na colcha de retalhos ideológicos dentro do PT, a “esquerda” do partido está tão diluída com suas querelas intestinais que não oferece nenhum perigo a ala direitista e conservadora. Portanto, o diálogo construtivo e voltado para as questões fundamentais do país é interditado. Não é possível pensar em políticas partidárias se não levar a exaustão o debate mais profundo e que margeia todas as matrizes do desenvolvimento: a crise do Estado brasileiro e suas repercussões sociais. Em suma, fica a pergunta que teima em sair da alcova: a esquerda brasileira está realmente preocupada com a visceral questão da crise do Estado?

A estrela desce ao abismo. Tarso Genro que presidiu interinamente o partido durante o auge da “crise mensalônica” chegou a falar de "refundação" do PT. O debate foi abortado drasticamente graças a intervenção soturna de José Dirceu e seus "companheiros" de rabo preso com os escândalos do período. Mais uma vez, o partido perdeu o bonde da história e deixou de purgar dentro dos seus quadros a podridão da corrupção e falta de visão política. Não pairam dúvidas sobre os rumos do partido no atual momento político e para colocar em prática sua sobrevivência e fazer jus sua história é preciso ter a coragem e a capacidade para se reconhecer e transformar. Muitos companheiros leais aos ideais originários do partido saíram do PT, sem deixar de acreditar na política como meio de transformação da realidade. Diante do quadro de fragilidade partidária, o PT tem dois caminhos antagônicos: fazer sua refundação e reorientação política ou se transformar mais uma mera sigla eleitoreira no teatro partidário da idílica democracia à brasileira.

A crise dos partidos de esquerdas não se deve tão somente à crise do socialismo ocidental simbolizada na queda do Muro de Berlim. As esquerdas padecem de uma visão de futuro contra as mazelas aplicadas pelos programas dos partidos neoliberais e serviçais dos interesses do grande capital. O capitalismo transforma e se adapta suas praticas de atuação conforme suas necessidades em nome da usurpação da mais-valia. A alternativa socialista não poderá ser um monólito pálido carente de visão de futuro. Para um novo PT, não há um outro caminho senão a sua refundação. Reinventar a esquerda é um projeto alternativo de estrutura de poder. Reinventar o futuro não é apenas uma tarefa de burocratizar o aparelho partidário e fazer belas cartilhas programáticas que na prática nunca sairão nenhuma proposta factível do papel. Cabe ao PT reinventar a si mesmo, sair da letargia e do marasmo vampiresco por cargos e comissões, desalojar a corrupção crescente dentro dos seus quadros, reconstruir seu papel social e sua ideologia, transformar a política e o próprios ideais da esquerda e se afirmar como uma opção socialista para a sociedade brasileira. O PT precisa retornar às suas origens e observar que são os trabalhadores a sua base primária de sustentação e luta contra a opressão do capital que resulta em perversas desigualdades.

O século XXI não é apenas um paradigma a ser desembrulhado da caixa de Pandora, porém o desafio maior é acreditar na possibilidade de transformar injustiças e mazelas socioeconômicas em uma nova dinâmica onde a sociedade diminua sensivelmente suas disparidades tão grotescas. Ao contrário do que muitos acreditam, não será maquilando números de índices sociais e econômicos que chegaremos a um patamar civilizatório. O futuro sempre é impiedoso contra as senilidades do presente e cabe ao partido deixar claro que a bússola deverá apontar para um ideal socialista. A refundação do PT não é um mero casuísmo, mas a urgente missão de se renovar para avançar dentro das lutas e artimanhas de um mundo onde o fascismo do capital impera subornando bolsos, corações e mentes. O PT não poderá ceder as ilusões eleitoreiras e sucumbir as velhas charlatanices do poder de aluguel. Para o PT, é refundar ou perecer!

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Qual socialismo é possível?


Para além da esquerda (Primeira Parte)


Desde a queda do Muro de Berlim até os dias de hoje são profundas e notórias as mudanças do cenário político mundial. Tantas transformações que poderíamos pensar a década de 1990 como um marco divisório entre os mundos que separam as formas de refletir as entranhas do socialismo antes e depois do muro. Partindo do princípio que é mais salutar caracterizar as diversas manifestações populares com instrumental ideológico marxista com sendo "socialismos" (no plural). A esquerda ocidental pode ser caracterizada como um bloco partidário contrário à um direita liberal. As tipologias são tão diversas que não cabe neste momento caracterizar cada uma de suas variantes. Por hora, a melhor forma de refletir o posicionamento da esquerda no cenário político é analisar suas práticas perante o poder, enfatizando aqui o caso particular do cenário brasileiro.

O mais singular caso de "sucesso partidário" é sem dúvida nenhuma o Partido dos Trabalhadores (PT). Desde o seu nascimento no inicio dos anos 1980, oriundo de uma mescla de sindicalistas, intelectuais, religiosos, populares e líderes comunitários, o PT representou o resgate da esquerda esfacelada pela ditadura dos generais (1964 -1985). Desde os primeiros sucessos nas eleições regionais paulistas até a presidência em 2002, o PT deixou de ser pedra para virar vidraça em apenas duas décadas. Esperança ou pesadelo? O PT de Lula no Planalto nada lembra do antigo PT de "base e de lutas". A adesão eleitoreira das políticas neoliberais para as práticas petistas no poder é um sintoma relevante que o discurso descolou da prática. Sem entrar no mérito das contradições do PT como partido e como poder, a questão essencial se faz pertinente: é possível construir uma política e prática socialista sem recair em seus dogmatismos e fundamentalismos? E a questão fundamental para qualquer ponto de partida se faz necessária: qual socialismo é possível?


Para avançar a reflexão a respeito do socialismo, não será possível somente ficar preso aos antigos paradigmas e construções históricas que demonstraram insuficientes, ineficientes e degenerativas. Nunca se deve negar a história e, além disso, observar atentamente suas valiosas lições. Uma miríade de propostas socialistas já foi contabilizada pela história recente: o clássico socialismo soviético, o esquizofrênico socialismo chinês, o heróico e solitário socialismo cubano, as manifestações de grupos guerrilheiros socialistas em algumas repúblicas da Ásia, África e América do Sul até o socialismo bonachão e personalista de Chávez na Venezuela (a proposta denominada "bolivariana") e Morales na Bolívia ("socialismo de aluguel"?).


É importante ressaltar as diferenças não-triviais entre as ideologias reinantes e a conquista do poder. O poder é praticado pelas vontades narcisistas do grupo hegemônico que ocupam as brechas de vazio político, seja nas urnas ou na bala. Para o caso das ocupações políticas via golpe de estado, por mais ávidos que sejam seus interlocutores pelas leituras marxistas, os resultados práticos são representados pelo banho de sangue em busca da sua própria estabilidade e em nome da "governabilidade" no topo da cadeia de comando. Na representação democrática, a luta se trava pelo voto e pela participação efetiva do poder econômico. A democracia capitalista liberal está muito mais para a perpetuação de grupos econômicos do que pela capacidade de conduzir uma convergência equilibrada dentre as várias classes sociais. Neste quesito, os diferentes grupos que se autodenominam "socialistas" entram em morticínio ataque entre as várias correntes de pensamento. Tanta guerra tribal e acéfala tende com resultado o enfraquecimento partidário e mutilação de idéias e ações socialistas dando espaço para a não-ruptura do pensamento liberal dominante.



Qual a dose de estupidez presente nas várias denominações que se diz “esquerda”? O dogmatismo misantrópico contrário à liberdade do indivíduo é certamente um paradigma que precisa ser destronado. A articulação entre o coletivo e o indivíduo não é apenas uma mera retórica programática, mas um desafio realmente pertinente para avançar a idéia do socialismo não-atávico às práticas totalitárias. O apego deliberado ao poder não são exclusivas dos fascistas, liberais, militares ou qualquer grupo que ocupa ou deseja usurpar o poder. Cabe a um verdadeiro movimento socialista ser nutrido por um profundo respeito pela vida humana e não apenas o culto à uma simbologia partidária e alienante. É fundamental perceber que o verdadeiro inimigo do socialismo não é o liberalismo e seus similares capitalistas, porém é sobretudo as práticas totalitaristas praticados pelos próprios socialistas, estejam no poder ou não. Ação e discurso não podem ser apenas meros acessos estanques entre teoria e realidade. As práticas devem estar compactuadas com uma teoria compatível à realidade de cada sociedade. O socialismo não é uma receita de bolo pronta para ser utilizada com um forno de microondas e independente da clientela, mas acima de tudo, uma permanente construção entre o que se deseja realizar e o que é possível efetivamente fazer de forma não-pragmática. Os liberais dizem que nada é possível fazer além de aceitar a realidade tal como ela é. No entanto, cabe aos socialistas e seus simpatizantes duvidarem do pragmatismo liberal e demonstrar que não existem fronteiras quando se trata da superação da miséria humana.



A democracia burguesa tem algumas vantagens dentre um oceano de desvantagens. A primeira delas é a liberdade para refletir o quanto o pensamento socialista precisa avançar para se tornar alternativa viável de transformação. É imprescindível atentar para um fato transformador e avassalador: a transformação não deve ser apenas a ocupação ou usurpação do espaço político, mas a construção diária do desmonte das estruturas que oprime as camadas desprotegidas e as minorias sociais.


Não é possível criar falsas ilusões perante a realidade: um verdadeiro programa socialista não deve ser pautado pela vaidade e o discurso populista de algumas de suas lideranças, mas a obsessiva e fundamental busca do resgate da esperança e da ação transformadora que leve a todas as pessoas não somente o progresso material, mas essencialmente, a superação das desigualdades e a condução da dignidade humana.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Antinomias do Poder

(Imagem da Ilha do Mussulo, Angola, 2005)

Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo. (Karl Marx, Teses sobre Feuerbach, 1845)

Todas as formas de poder são ilegítimas, exceto aquelas que não visam sucumbir às suas entranhas. A história da humanidade pode ser sintetizada como sendo a busca implacável pelo poder. A intensidade desta busca pode ainda variar conforme a paixão, o ódio, a repugnância, a afeição ou o desespero conforme o grau de necessidade e interesse do grupo que deseja ocupar um espaço político. O espaço político é aquele no qual seja possível tecer relações sociais entre seus membros. Excetuando as religiões mais dogmáticas, todo espaço político é passível de mobilizações. Nada é absoluto e muito menos eterno. O espaço político vive em constante sístole e diástole entre suas esferas. A esfera de poder está intimamente ligada com diversos interesses de grupos. Mas nos diversos regimes já adotados pelas sociedades, seja tirânico, democrático ou teocrático, em todos eles há um denominador comum: a busca pelo poder. Seja num regime político aberto ou fechado, há em seu seio uma permanente luta por espaços associados a diversos interesses. Em todos os esboços revolucionários (ou pelo menos dignos de nome), a luta interna pelo poder é tão ou mais intensa quanto a luta para destituir o outro poder, ou seja, o “poder do inimigo”.


No sistema capitalista, deter o poder significa ser doutrinado por uma classe dominante que permite sustentar todas as estruturas de espoliação do trabalhador, interagir barreiras alfandegárias e cambiais, utilização do espaço público como extensão dos interesses privados entre outras nuances, são ações imprescindíveis para a sua própria existência. No capitalismo a ordem unilateral é a multiplicação assimétrica de mais capital. Na política no regime capitalista é a síntese da disputa de segmentos partidários para verificar qual deles consegue uma melhor condução da política do status quo vigente. No capitalismo a ordem é a acomodação e jamais a transformação. Não interessa aos capitalistas turbulências em seus negócios e muito menos movimentos que possam radicalmente alterar seus nichos mercantis. A democracia, portanto, não é um pressuposto essencial e único para o capitalismo velejar, mas tão somente a liberdade. É preciso deixar claro que a liberdade em questão é a que tange a esfera predominantemente econômica em detrimento a qualquer outro diagnóstico pueril de liberdade. A justiça é importante quando a lei esta ao lado do capital. Não existe justiça totalmente imparcial assim como não é possível descartar a imparcialidade do juiz. A justiça é feita pelos homens para interagir seu martelo com outros homens. A justiça no sistema capitalista jamais é “cega”, no mínimo, caolha. Logo, a justiça é um conceito essencialmente político. Todo juiz é um ser político e suas sentenças serão de acordo com seu ideário político. Assim, democracia, liberdade e justiça são bens essenciais para uma sociedade, mas enquanto construção de interesses humanos são elementos cerceadores do poder.


O poder de autoridade é exercido pelas botas da opressão. Na democracia capitalista é onde o poder de coerção social possui sua vertente mais hipócrita dentre todos os regimes já construídos pelas sociedades. Na medida que reprime uma manifestação ou ocupação de terras por trabalhadores rurais, por exemplo, a polícia “democráticamente” protege os pressupostos “direitos de propriedade” do latifundiário. Uma única pessoa, o “capitalista”, é o “posseiro regularizado” (vulgo, o “dono”) de uma vasta quantidade de terras (independente de sua produtividade) em detrimento a situação de milhares de famílias jogadas à sorte da mendicância campesina. Para o poder judiciário, tudo é normal e “dentro da lei”. A coerção do poder do Estado garante a “integridade” das terras para o latifundiário, mesmo sabendo que isto poderá levar a desgraça milhares de pessoas famintas! Na democracia capitalista, o poder não prega igualdade ou fraternidade, mas, sobretudo à “obediência” a uma suposta Constituição vigente elaborada por políticos que defendiam determinados interesses de grupos que apoiaram sua caixa “um” ou “dois” eleitoral.


O poder só existe essencialmente através das massas (1) . As massas não precisam do poder para existir. O poder é uma abstração política, as massas é o sangue pulsante da realidade. Somente o que poderá se opor verdadeiramente a noção de poder será a sua contraparte político-ideológica, por assim denominamos, o “contra-poder”. A idéia da construção de um modelo para desenvolver a abrangência do contra-poder não significa, a priori, a pura e simples subversão da ordem, uma vez que a alteração cosmética desta ordem não é essencialmente uma ruptura do modelo vigente. O contra-poder terá como linha mestra a subversão da própria idéia de poder: recusa-lo inicialmente e, posteriormente, sedimentar esta nova manifestação política e social, não apenas como base ideológica, mas sobretudo, sua práxis. O contra-poder representará a renuncia da busca alucinada e demagógica pelos poderes nas vias tradicionais de aderência de esferas de comando. O contra-poder não visará restituir nenhuma forma de poder, mas eliminar toda forma de coerção e manipulação pré-existentes inerentes a esse poder.


A autodeterminação dos povos é a principal meta teórica do contra-poder e sua práxis induzirá na plena liberdade de sublevação dos oprimidos. Nenhum segmento da sociedade pode ser escrava de um outro segmento. A escravidão, seja ela qual forma vil se manifeste, é uma ignomínia da Natureza humana. A democracia deverá ser ampliada afim que se possam conviver plenamente as diversidades sócio-culturais. Infelizmente, hoje quanto mais se fala em democracia, mais são sensíveis os parâmetros da opressão, seja ela velada ou não. A liberdade pressupõe que todos têm o direito a se expressarem livremente de forma autônoma, sem bloqueios ou amarras, seja de natureza política, religiosa ou econômica.


A justiça pressupõe o direito da não-submissão de oprimidos e a não-aceitação da divisão social. A diferenciação por classe ou estamentos da sociedade também é outra aberração da Natureza humana, e possivelmente seja as mais antigas de todas desde quando o primeiro homem usurpou para si um pedaço de chão e auto-proclamou de “meu” (a partir deste momento era parida a doutrina que fico sendo conhecida como “propriedade privada”). A verdadeira democracia e a essencial liberdade para serem dignas das estruturas viscerais das sociedades será imperativo a abolição incondicional das classes sociais. E neste estágio de humanização social onde serão inseridos os padrões mínimos de uma verdadeira justiça entre os homens.


Os movimentos de massa deverão livremente serão gestores de suas ansiedades e necessidades. Questões vitais como a educação, a saúde, o abastecimento alimentar e o saneamento básico entre outras ponderações igualmente importantes, serão administrados de acordo com os interesses dos membros destes movimentos de forma democrática e coletiva. O contra-poder tem como premissa fundamental a libertação do homem de suas amarras socio-economicas e entregar em suas mãos a condução de sua vida e do seu grupo social o qual está inserido. Não precisamos de sangue de inocentes para cultuar religiosamente, todos os povos serão mártires de si mesmos.


Não carecemos de razão, carecemos de utopias. O contra-poder não representa a negação da política, mas o escancaramento de sua democratização ao acesso dos fazeres políticos. O homem é um animal essencialmente político, negar a política é privar o homem de sua capacidade de interlocução entre seus pares. No entanto, não é possível construir um mundo encharcado de ódio, segregação, miséria, fome, moléstias cuja a cura seja amplamente conhecida e as diversas formas de extração da mais-valia. Somente uma mobilização ativa em prol da construção do contra-poder poderá encontrar nas raízes existenciais do ser humano, o resgate hercúleo do humanismo como forma de libertação das alienações vorazes dos poderes vigentes.


Não é possível legitimar pseudo-ideologias sob o manto faustiano de corromper as massas em prol de um grupo de pequenos “iluminados” cujo desenrolar a história registra trágicos destinos. Não podemos justificar doutrinas com sangue inocente, eclosão de barbáries sob a pseudo-razão do levante de bandeiras atreladas a conquista da imaterialidade do poder. Todo poder é transitório, mudam-se suas táticas, mas persistem suas atrocidades. O contra-poder não é uma doutrina ou busca ser uma cartilha de práxis pré-determinada. O contra-poder busca a libertação do homem de um sistema escravo-mercantil em nome de uma nova visão de dignidade do ser humano. O contra-poder não busca pretensiosamente ser uma doutrina semi-religiosa, mas tão somente uma saída que tão aflige o ser humano há séculos. Somente o homem liberta o próprio homem, o resto é engodo vociferado por aqueles que ostensivamente lucram explorando milhões de outros homens.

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(1) Aqui definimos “massas” como um segmento predominantemente homogêneo de uma sociedade, com particularidades e interesses em comum.